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Foto do escritorLuiz Antonio Titton, Phd

Aprendizagem Ativa e o Mito do Cone de Aprendizagem

É incrível constatar que uma parte da Teoria da Aprendizagem Ativa (Active Learning Theory) cite incorretamente, como fundamento, distorções a respeito de trabalhos sérios. Mas, isso acontece. Não são poucos os blogs afirmando que a base da pirâmide da aprendizagem representa um alto percentual de retenção de conhecimento sem antes ter lido o texto original. Nesse texto iremos apresentar o verdadeiro cone da aprendizagem e explicar porque é base sólida para fundamentar a aprendizagem ativa e, também, mostrar o que é falso no cone divulgado pela imprensa jornalística.

Ao afirmar que o cone é "fake", é preciso compreender que o Design Instrucional não considera incorreta as afirmações dos autores que produzem conhecimento que está por trás da ciência, apenas serve para entender o que está errado nessa imagem muito conhecida.

 

É importante dizer que quando essa pirâmide é apresentada, normalmente sua criação é atribuída a Dale, em 1969, na terceira edição de um livro que foi publicado originalmente em 1946 (1), portanto seria de se pressupor que o seu embasamento é anterior à data normalmente citada. A primeira edição teve várias reimpressões, sendo que a primeira impressão é relativamente rara e as seguintes são encontradas como livros usados, principalmente as produzidas nos Estados Unidos. Portanto, as citações estão incorretas (inicialmente) pelo ano e (mais adiante) por percentuais que não foram criados ou confirmados pelo autor.

 

O início da preocupação com retenção do conhecimento na educação


A citação mais antiga em um artigo em periódico científico sobre a preocupação com a retenção do conhecimento encontrada vem de 1913, quando em um ensaio sobre o Método Montessori, Frances Haskel declara que "lembramos 2 em 10 do que ouvimos, 5 em 10 do que vemos, 7 em 10 do que tocamos, 9 em 10 do que fazemos." (HASKELL, 1913, p. 638)

Mas, se existe essa afirmação sobre o quanto retemos a partir do que fazemos em um ensaio, porque essa afirmação não pode ser tomada como ciência? Pelo simples fato de que é um ensaio - um texto de comentário sobre algum assunto científico. Não há nenhuma pesquisa anterior que tenha feito coleta de dados estatisticamente válida, submetida a outros cientistas de renome para uma revisão, que tenha resultado em uma publicação como um artigo científico. Portanto, embora seja a publicação mais antiga encontrada em um periódico científico, não é ciência - é pura argumentação. Vale observar que nesse mesmo texto original, um pouco antes dessa afirmação, ao elogiar a Dra. Montessori, o autor comenta que ela fez um brilhante trabalho de criar uma abordagem didática universal, apesar das diferenças entre as crianças da Itália "serem inferiores às crianças norte-americanas por muitas razões. Elas são anêmicas, por causa do clima, alimentação fraca, e não têm iniciativa, tendo sido submetidas por gerações a opressão militar. As crianças norte-americanas têm muita energia, porque ainda vivemos próximos aos nossos ancestrais pioneiros, temos mais índole para o trabalho e ação." (HASKELL, 1913, p. 638). Ao fazer essa afirmação, sem dúvida uma exposição de opinião pessoal, não há dúvida mesmo de que trata-se de um artigo de opinião e não de um artigo científico, mesmo para os padrões da época.

É digno de nota que ele cita, no Método Montessori, a postura do professor observando o comportamento da classe com uma visão menos tradicional para a época, ou seja, passando a considerar a existência dos alunos - estranhei ler sobre isso como algo adverso mais de um século depois.

O artigo, que se auto denomina elogioso, ainda segue citando que a ótima contribuição da Dra. Montessori só foi possível porque ela seguiu exatamente os passos anteriores do educador francês Dr. Sequin (não temos maiores informações no artigo sobre quem ele se refere) . Enfim, não foi possível identificar se o artigo estava fazendo alguma ironia ou se realmente eram elogios ao Método Montessori. De qualquer forma, isso vale pela informação de que houve uma primeira vez que a retenção do conhecimento foi assunto em um periódico científico (sic). No período que vai desde esse primeiro texto encontrado até hoje, não fui capaz de identificar nenhum artigo científico revisado pelo método blind review de periódico ranqueado (JCR) que comprove qualquer percentual de retenção associado aos itens desse cone de aprendizagem. Na verdade, as citações mais antigas, sempre dizem que os percentuais são conhecidos e usualmente citados, mas ninguém sabe de onde eles vieram e, mais interessante, esses percentuais mudam com o passar dos anos, também, sem explicação.


Estilos de aprendizagem tiram a credibilidade desses percentuais

Quando as primeiras hipóteses surgiram de que as pessoas aprendem de maneira diferente ao sugerir que algumas aprendem mais ouvindo do que lendo ou vice-versa, a própria estrutura dos percentuais atribuídos não se sustenta.

E, supondo que esses percentuais apresentados no cone da aprendizagem fossem a média da população, qual sua utilidade se não representam o indivíduo que aprende?

Seria o mesmo que afirmar que os alunos devem aprender em métodos que usam a didática média - e, com isso, estaríamos excluindo da educação os extremos de cada par de estilos de aprendizagem, ou seja, os alunos que aprendem muito mais com a leitura e quase nada com a aula expositiva estariam excluídos e, no outro extremo, os alunos que aprendem muito mais com a aula expositiva e têm dificuldades enormes em aprender com a leitura também estariam excluídos, porque a didática seria ministrada somente pela média para atender aos percentuais do cone da aprendizagem.


Qual é o verdadeiro cone?

O cone evoluiu, não nasceu pronto. A discussão que o gerou começa ao se tentar uma classificação de meios de transferência de informação do que é mais concreto até o que é mais abstrato no livro Visualizing the Curriculum, em 1937. Era uma referência ao uso de áudio-visuais no decorrer da evolução do Design Instrucional como um ramo da Ciência.

Isso foi antes da incorporação das tecnologias baseadas em computadores e, talvez, seja discutível como esse modelo incorporaria algumas das novas mídias contemporâneas, mas na época incluia o que havia de mais comum no meio de treinamento e educação. (3)

Ainda não é o nosso conhecido cone, mas demonstra que o foco estava na classificação dos meio na dimensão concreto x abstrato, e não na retenção do conhecimento.


A primeira concepção de Dale ocorreu em 1946 (4) e a última em 1969 (5), com atualização dos meios áudio-visuais e o acréscimo de uma classificação de ativo, icônico e simbólico. Note que não há nenhuma afirmação de que existem percentuais de retenção em nenhuma das versões.



Aproveitar esse cone, na sua última edição, com a finalidade de retenção de conhecimento não é uma utilização correta porque o seu objetivo só faz sentido para demonstrar uma proposta de classificação dos meios áudio-visuais. O autor não fez nenhuma correlação entre o quanto esses meios é concreto ou abstrato, em qualquer nível do cone, e a retenção de conhecimento!


A utilidade do cone para a aprendizagem ativa

Mas se não há nenhuma intenção do autor, onde está a conexão entre o cone original e a aprendizagem ativa? Isso só é possível fazer ao se observar que os estilos de aprendizagem estão associados com os meios de transmissão do conhecimento. Explicando com mais detalhe, seria o mesmo que dizer: se a pessoa tem maior retenção de conhecimento com ênfase no canal visual, os meios de transmissão de conhecimento são os meios que têm características visuais (textos, filmes, vídeos, televisão, etc). Se a pessoa tem um estilo com maior concentração cinestésica, os meios vivenciais têm tendência a promover maior retenção do conhecimento (dramatizações, aprender-fazendo, etc). Se a pessoa tem um estilo com maior retenção no canal auditivo, mídias com essa característica têm propensão a aumentar a retenção (gravação, aulas expositivas, etc).

Vale lembrar que o estilo de aprendizado apontado em testes e pesquisas nunca podem afirmar que uma pessoa possui somente um único canal como exclusivo, o que esses testes apontam é a predominância de um canal que promove maior retenção de conhecimento.

E, também, a maioria dos meios de comunicação e transferência de conhecimento não são exclusivamente definidos por um único canal. Por exemplo, uma vídeo aula inclui a apresentação do professor (canal visual), com o áudio da explicação (canal auditivo), o texto que está sendo falado como legenda (canal visual) - atende dois estilos predominantes, mas não propicia a interação física com o conteúdo didático (canal cinestésico).


 

Quer saber mais sobre aprendizagem ativa? Veja aqui

 

Aprendizagem Ativa serve para todos alunos


Então, considerando que alguns alunos possuem estilos de aprendizagem com maior concentração no canal auditivo, por exemplo, existe a possibilidade que a Aprendizagem Ativa não causa o efeito esperado?

Na verdade, isso pode acontecer se o Design Instrucional não incluir na atividade elementos que sejam abrangentes, ou seja, que incluam a possibilidade de que o aluno possa escolher a forma que irá aprender - exatamente o que é a proposta da aprendizagem ativa = ele escolhe como irá aprender.

Tomemos um exemplo simples que eu vivenciei. Certa vez, empolgado com os filhos e vendo a prática de amigos, comprei um livro de origami - só que original em japonês. Meu conhecimento de japonês limita-se apenas às 2 primeiras sílabas do katakana, ou seja, sou um analfabeto no japonês. Mesmo assim, o livro é bom porque mostra o esquema passo a passo para fazer uma dobradura que resulte em algo significativo.

E, lá vou ensinar ao meu filho a fazer os origamis básicos. Primeiro expliquei, ele não entendeu e não conseguiu reproduzir (canal auditivo). Depois mostrei no livro o esquema e ele não conseguiu reproduzir (canal visual). Desesperado, fiz e pedi que ele repetisse, ficou muito mal feito (canal cinestésico). Infeliz, passei a fazer com ele ajudando a fazer cada dobra e refazendo quando não ficava bom (aprender-fazendo, usando os 3 canais) e ele compreendeu. Olhando o esquema, repeti o processo (ele aprendeu a "ler" o esquema com o passo a passo). Ele praticou mais algumas vezes sozinho, seguindo o esquema. A partir daí, ele começou a escolher outros origamis e seguindo o esquema conseguia fazer novos origamis (ele escolheu o que aprender, refazia quando não ficava bom até conseguir em uma sequência de aprender fazendo). Ele aprendeu a avaliar seu próprio trabalho quando não ficava bonito que nem a foto que está no livro (self assessment, auto-avaliação) e ele decidia se ia ou não tentar de novo (decidir se irá continuar aprendendo aquilo ou não, escolheu o que aprender). E, mais: o livro ficou "largado" sem um lugar para ser guardado, ele escolhia quando aprender.

Note que estava usando um meio do topo do cone da aprendizagem, que representa os meios icônicos, que é um livro, mas de forma dos símbolos visuais, não de palavras. Em princípio seria um canal extremamente ruim de aprender e com baixa retenção. Mas, o design instrucional usou um meio ruim de forma interessante e, como consequência, o guri consegue fazer a tarefa sem o esquema do livro (25 anos depois), com qualquer tipo de papel, em qualquer contexto que ele julgue adequado (até para impressionar as namoradas).

O meu objetivo na época não importa, mas o que é notável foi o processo que ele usou para aprender a fazer vários origamis - foi 100% aprendizagem ativa. Coube ao designer instrucional adequar nos procedimentos as condições que propiciaram a ocorrência da aprendizagem ativa. Tente ensinar origami usando a aprendizagem tradicional! Grave seu vídeo explicando (não vale fazer na hora) com vídeos usando um esquema que vem em um livro japonês! (coloca nos comentários o link - estou curioso para ver)


 

Quer aprender-fazendo?

Ensine esse 折り紙 (origami)

 

Conclusão


Não seria eu o primeiro a levantar esse questionamento e o primeiro a afirmar que é falso o cone da aprendizagem que usa percentuais, Letrud e Boylan (5) já expuseram essa mentira antes e publicaram em periódico científico de grande aceitação no meio acadêmico.

Então, concluo que

  1. os percentuais são mera fantasia e não devem ser levados em conta;

  2. a organização dos itens listados no cone de aprendizagem referem-se a posicionamento nas dimensões abstrato X concreto e não a outra interpretação;

  3. o cone de aprendizagem faz sentido para a aprendizagem ativa se considerar o estilo de aprendizagem

Ainda tem dúvida, quer saber mais, gostou do que leu, tem alguma dúvida ou gostou do que leu? Acrescenta seu comentário, crítica ou pergunta no campo abaixo - vou responder, sempre, quem sabe te mando algum artigo que você não conseguiu acessar...

 

Referências


(1) DALE, Edgar. Audio-Visual Methods in Teaching, 1954.


(2) Haskell, Frances A Good Word for the Montessori Method, Journal of education. v.78 (1913). - disponível no link https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=hvd.32044102790094&view=1up&seq=643, acessado em 18 de julho de 2020.


(3) Hoban, Charles F. ,Sr; Hoban, Charles F. ,Jr.; Zissman, Stanley B. About realism, abstract, and concrete representations of the value of audiovisual materials, in Visualizing the Curriculum, 1937, imagem disponível em https://sites.google.com/site/thecorruptedconeoflearning/home/dale-s-cone-of-experience-timeline/1954-audiovisual-methods-in-teaching-2nd-edition, acessado em 18 de julho de 2020. Texto completo disponível em https://cursa.ihmc.us/rid=1138635697593_780480579_511/Hoban_Hoban_and_Zisman__Why_visual_aids.pdf, acessado em 18 de julho de 2020.


(4) DALE, Edgar. Audio-Visual Methods in Teaching, 1946, Imagem disponível em https://sites.google.com/site/thecorruptedconeoflearning/home/dale-s-cone-of-experience-timeline/1946-cone-of-experience-version-1-0, acessado em 18 de julho de 2020.


(5) DALE, Edgar. Audio-Visual Methods in Teaching, 1969 Imagem disponível em https://sites.google.com/site/thecorruptedconeoflearning/home/dale-s-cone-of-experience-timeline/1969-audiovisual-methods-in-teaching-3rd-edition, acessado em 18 de julho de 2020.


(5) Letrud, Kare; Hernes, Sigbjorn Excavating the origins of the Learning Pyramid Myths, Cogent Education, 5 : 1518638, 2018 disponível em https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/2331186X.2018.1518638, acessado em 18 de julho de 2020.













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